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Textos de amigos e músicos do artista.

Esta é a verdadeira história da Música Popular Brasileira

Gilberto Mendes

Santos prestou grande homenagem a um verdadeiro representante da verdadeira jovem música popular brasileira. Edu Lôbo, 22 anos apenas, Já consagrado em dois concursos, aqúi estêve numa tarde frente a uma multidão atrás de seu autógrafo, no “Recanto do Livro”, Gonzaga, e à noite num espetacular “show” no Clube XV, superlotado, superanimado como um festival.

Carlos Augusto Côrte Real prestou-me o grande favor de me facilitar uma entrevista com Edu Lôbo, convidando-nos para um encontro em sua casa, onde pudemos bater um papo à vontade, mas sempre com aquela preocupação de horário, ensaios, aquela correria que caracteriza a vida do artista popular. E tivemos de sair com Edu, para continuar a conversa pelo caminho, entre um ensaio e outro, até a hora da apresentação.

Edu Lôbo impressiona imediatamente pela simplicidade. Trata-se de um compositor dos mais honestos e equilibrados. Sincero, sem golpes publicitários, conforme sua obra já nos permitia imaginar.

Edu Lôbo firmou sua personalidade ainda “teenager” diferenciando-se dos seus companheiros da mesma época em busca de um caminho seu, que foi encontrar no folclore. Essa tomada de posição, que poderia significar, nas mãos de um artista qualquer, mais uma vulgar volta patrioteira às “fontes da nacionalidade”, teve como resultado, em sua visão inteligente, algumas das melhores obras do período áureo da bossa nova. Dentre elas destacamos “Reza” e “Chegança”, dois autênticos clássicos da MPB. Profundamente enraizadas em nossa terra, quanto a seus elementos estruturais, por outro lado transcendem a coisa nacional; não interessa nelas o reconhecimento das constantes melódicas e rítmicas do nosso folclore. Muito acima dêsse suporte, é Edu quem fala. Interessa o coeficiente de desconhecido aí contido, a informação nova que Edu consegue transmitir, à base da recriação do material folclórico. A universalidade de um sentir musical e humano, de vidas sêcas, submissas. Um intimismo aprendido com a bossa nova.

Outra música sua, a “Canção do Amanhecer”, é uma das obras-primas do nosso cancioneiro. Sua mobilidade tonal, a harmonia contida, a fôrça criadora revelada em sua transfiguração melódica só encontram paralelo nos melhores “lieder” de Schumann, Hugo Wolf, Richard Strauss. Como acontece também com as canções de Antônio Carlos Jobim, ao lado do qual Edu Lôbo pode se orgulhar de ser o único compositor brasileiro já com direito a figurar.

Jobim primeiramente e agora Edu, continuando o mesmo trabalho, representam o momento histórico em que a MPB herda definitivamente os objetivos da música erudita de caráter nacionalista. É inútil insistirmos em voltar a Noel Rosa. Pelo menos um determinado tipo de compositor popular se alfabetizou e não vai deixar de saber ler por que alguns comentaristas estúpidos tacham sua música de impopular.

Edu Lôbo não pestanejou em atribuir à bossa nova a responsabilidade pela “revolução cultural” havida na MPB. Observou inteligentemente como uma música aparentemente leve, despreocupada, chegando às vêzes a parecer superficial – “música de apartamento”, como muitos chamam – pode trazer tão grande contribuição. Sem a qual êle, Edu Lôbo, não teria podido abordar o folclore com aquela visão nova que lhe permitiu soluções tão pessoais. Edu não forma de jeito algum entre os detratores, os renegados da bossa nova. É consciente do quanto deve, a êsse importantíssimo movimento renovador da MPB.

Edu Lôbo é um compositor de caráter firme. Tem convicção. Enquanto outros, como Jorge Ben, procuraram também utilizar elementos folclóricos dentro da bossa nova, mas posteriormente se adaptaram a novas modas, Edu permanece o mesmo em seus objetivos. Em resposta a uma pergunta sôbre suas pretensões no campo da música popular, confessou que de fato quer estudar para um, dia compor a “grande música”, não só em qualidade mas também em tamanho. Daí partimos para uma discussão em tôrno dessa “grande ilusão”.

Hoje em dia vemos com absoluta clareza uma única divisão no trabalho artístico: entre aquêle que “inventa” o material, o signo nôvo, portanto absolutamente indiferente a ser entendido (por que o nôvo não pode ser entendido pela massa); e aquêle que veicula o material que já se tornou “significativo” pelo uso. Na famosa classificação de Ezra Pound, o “inventor” faz a vanguarda e o “mestre” faz o trabalho de massa, dentro do qual pode e deve atingir a mesma qualidade superior de realização, o mesmo grau de erudição. Aquela frustração que o compositor popular sente – de que me falou Edu – por não haver escrito uma “grande sinfonia” não se justifica. É verdade que continua existindo um tipo de música popular realmente de massa, no mau sentido, isto é, fácil, elementar. Mas Edu Lôbo, como Jobim, Menescal, Gilberto Gil, Chico Buarque e outros grandes compositores do momento precisam despertar sua consciência para o fato de que estão fazendo a música erudita nacionalista, isto é, de comunicação coletiva. Mesmo quanto a Chico Buarque, êle quer ser popular, voltar a Noel; mas na prática compõe essa impressionante “Roda Viva”, que reflete todo o seu “berço” intelectual (não nos esqueçamos de que êle é filho de um Sérgio Buarque de Hollanda).

Da discussão sôbre “Ponteio”, espero que Edu, para seu próprio bem, acabe concordando conosco: trata-se de um trabalho rigorosamente erudito. Nenhum ponteio de tôda a música erudita de caráter nacionalista atingiu tamanha qualidade artística e fôrça expressiva. Mais um exemplo, típico da obra de Edu, em que a côr local, a origem folclórica desaparece, dominada pela personalidade musical do criador. Tudo aí é criação, é potência: a permanente tensão interior, como que elétrica, atrai, arasta realmente o ouvinte. Desde os compassos iniciais, no violão, a flauta em seguida e o clima nostálgico crescendo e explodindo num trágico acorde dissonante nas vozes e instrumentos. Êsse acorde já era pressentido e ecoa o resto da música, que em seu final modula à maneira de Debussy para um estágio mais rarefeito, com palmas e ponteios de cordas, num movimento mais de dança, terminando nobre e afirmativa, como o “flamenco” espanhol.

Edu contou que levou um mês preparando o arranjo musical. Um mês de sofrimento criador! O que mais êle pretende para se considerar um autor erudito? A música e o arranjo de “Ponteio” têm tôda a sobriedade, a contenção, a economia de meios inclusive do espírito da música de vanguarda. Aquela justa medida weberniana, que Jobim e João Gilberto introduziram em nossa música popular. Aqui existe criação e não no surrado sinfonismo clássico-romântico dos “arranjos” (no mau sentido) de temas folclóricos de uma pretensa música erudita nacionalista. Se Edu Lôbo pretende ser um compositor erudito, pode dormir tranquilo por que êle já é. Um compositor erudito, no sentido de continuar aquilo que êle tanto admira na obra de Villa-Lobos. Por que na faixa pròpriamente “inventiva”, isto é, da criação do material nôvo, êle teria de abordar o som eletrônico, concreto, teria pela frente tôda uma nova possiblidade de manipulação do SOM em que não mais predomina a melodia. Não poderia “continuar” Villa-Lobos.

Por mais importante que tenha sido o caminho aberto por Caetano Veloso e Gilberto Gil (por muitos e inclusive por mim já saudado), não há a menor dúvida de que “Ponteio” foi a melhor música do último festival. E é a música mais impressionante de tudo quanto já foi feito em nossa música popular.

Edu Lôbo comentou ainda a injustiça feita a uma música como “Eu e a Brisa”, de Johnny Alf, que a seu ver merecia estar entre as melhores classificadas. O aborrecimento, o mal-estar geral que causou entre os artistas o “devoramento” de Sérgio Ricardo pelo público. Eu fiquei muito, satisfeito de verificar que partilhamos de uma mesma opinião: “O Cantador”, de Dori Caymi, é uma música extraordinàriamente bela.

Sua enorme curiosidade em saber e discutir a música de vanguarda fêz com que perdêssemos muito tempo que poderia ser aproveitado em mais perguntas a seu respeito. Vale a pena êste registro, para mostrar o seu desprendimento, seu desinterêsse em falar de sua própria pessoa. Em primeiro lugar Edu Lôbo quer aprender.

Êsse é o retrato de um artista quando jovem (com a devida licença de Joyce); o esbôço que pudemos fazer de um artista modelar, sério, um exemplo a ser seguido pela nossa juventude musical.

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