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Textos de amigos e músicos do artista.

Ensaio de Mauro Dias

Mauro Dias

Edu Lobo é o músico mais importante da chamada segunda geração da bossa nova. Definida por Tom Jobim e João Gilberto – basicamente eles -, a bossa teve alguns de seus parâmetros entendidos de maneira deformada. Entenda-se: a história do “amor, o sorriso e a flor” não era bem aquela lembrada e repetida tantas vezes, até hoje, para caracterizar o movimento como “alienado”. A letra que Newton Mendonça escreveu para Meditação, música de Tom, era clara: “Quem acreditou no amor, no sorriso, na flor, então sonhou, sonhou, e perdeu a paz”. Poderia quase ser entendida como política, se houvesse sido escrita alguns anos depois.

É inegável, entretanto, que as preocupações sociais não estavam na ordem do dia, nos primeiros momentos da bossa. Nascida no final dos anos 50, ela era reflexo – Carlos Lyra o afirma tantas vezes – de uma atmosfera de otimismo surgida com a política desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek (pagaríamos por isso mais tarde, mas essa é outra história). Mais: a bossa não parecia preocupada com nada que não fosse ela mesma, sua batida, seu olhar autocentrado. Bem, alguns compositores, cantores e letristas posteriores a Jobim, João e Newton Mendonça acabaram dando a essa idéia foro de verdade, o que também é outra história.

O fato é que a bossa aparentava não estar preocupada com outro Brasil que não fosse aquele visível da calçada de Ipanema. Naturalmente, Tom e João não tinham culpa do fato. Não podiam ser mais discordantes de tal perspectiva tão redutora. Ainda assim, junto com o canto impostado, a bossa varreu do mapa os baiões, as milongas, as toadas, as modas de viola, as cirandas, os maracatus etc. etc.

O Brasil, no entanto, mudaria da euforia juscelinista para as tensões do período Jânio-Jango e o que se sabe que veio depois. Passaria a olhar para si mesmo não mais como um milagre planejado e estanque, um paraíso beijado pela brisa tropical – havia um pouco mais. Havia o que aplaudir mas também o que criticar. Havia mais o que criticar, por sinal. E foi nesta atmosfera que se gestou a segunda geração da bossa. Foi quando Edu Lobo surgiu.

Como nenhum outro compositor de sua geração, Edu Lobo aplicou à sofisticação harmônica da bossa o vasto conhecimento que detinha da música popular brasileira – ou vice-versa. Compunha, ainda, sobre seu quintal. Mas seu quintal era mais vasto. Estendia-se pelos interiores, percebia outras imagens além daquelas que cantavam o sol, o sal, o sul divisado da janela. Tom Jobim, sempre ele, havia deixado clara a existência dessa perspectiva. Edu levantou as persianas.

Caminhou, curiosamente, em duas direções aparentemente contraditórias. Se trouxe para a temática da nova música popular (a música da segunda geração da bossa nova) o nordestino, o negro, o índio, o deserdado, o que não se havia alinhado ao modelo juscelinista (para além da metáfora, o pescador de Arrastão (letra de Vinicius de Moraes) é um ressalte do brasileiro que ainda não comprara – nem compraria – seu fusca nacional zero quilômetro), por outro lado avançou, em termos melódicos e harmônicos, na direção de uma textura erudita – da possível linguagem musical erudita brasileira, como a quiseram Villa-Lobos e o onipresente Tom Jobim. Assim, se seu primeiro disco tinha aquele pescador (de metáforas?) e o nordestino sem rosto de Borandá (letra dele mesmo), tinha também a modelar Canção do amanhecer (letra com status de poesia de Vinicius), que consolidou o modelo estético da moderna canção brasileira.

Caetano Veloso, baiano do Recôncavo, reconhece, num parêntese elucidativo do livro Verdade Tropical: “Na verdade, o modalismo nordestino chegava a nós mais através do carioca Edu Lobo do que da divisa da Bahia com Pernambuco.” Mais adiante, Caetano assegura, falando sobre o espetáculo Arena conta Zumbi, que tinha música de Edu: “De fato, não é pouca coisa que se tenha realizado um musical coerente e bem amarrado no Brasil – algo que ainda hoje parece uma meta inalcançável para os brasileiros. Noel Rosa e Ary Barroso, Dorival Caymmi e Lamartine Babo sonharam com isso – Edu Lobo, o jovem autor da música do Zumbi, conseguiu realizar o sonho em 1965, na sua colaboração com (Augusto) Boal e Gianfrancesco Guarnieri, os autores do texto. Mas depois esquecemos, voltamos a lamentar o fato de termos compositores populares maravilhosos e não conseguirmos organizar uma tradição de musicais no teatro ou no cinema que nos enriqueça a vida com encantamentos.”

Bom, Caetano estava falando sobre o composto música-texto-cena. Chega a dizer que as tentativas de Chico Buarque no sentido de organizar a tradição de musicais atestam o esquecimento da fórmula. Ainda que o item “cena” possa ser considerado na perspectiva dessa análise, a motivação da cena, na parceria de Edu Lobo com Chico Buarque, fez surgir o mais belo de todos os discos editados no Brasil – é razoável supor que em qualquer parte do mundo. Trata-se de O Grande Circo Místico, composto para o balé do Teatro Guaíra, de Curitiba, no início dos anos 80. Sai de lá a exemplar canção Beatriz, o primeiro marco da ultrapassagem – do amadurecimento formal – do modelo de composição jobiniano. Quinze anos após haver estreado com música de cena, Edu Lobo superava o mestre Jobim, sua orientação mais constante, e determinava-se como o melhor compositor brasileiro de seu tempo.

Aloysio de Oliveira, espécie de provedor de meios para que a bossa nova (e a música que veio depois, já que produziu o primeiro disco de Edu Lobo, depois de haver produzido o encontro de Jobim e João), dizia – muito tempo depois, sem que lhe fossem atribuídos os méritos da assertiva, ela seria repetida por gente de fora do Brasil – que não havia outra música viva no universo além da que se fazia aqui. Nos anos 80, depois de décadas morando nos Estados Unidos e um tanto desiludido com o que via e ouvia por lá e por outras praças, manifestava-se, em lamento, nos seguintes termos: “O último grande compositor americano” – e sabemos muito bem que o formato da canção popular foi herdado dos Estados Unidos, em virtude da adaptação das peças musicais às limitações de duração dos discos de cera – “foi Jimmy Webb, que durou apenas dois anos, a partir de 1970.” Aloysio vaticinava sobre o fim de uma era. Muito bem, Webb naufragou no álcool e em outros vícios. Mas haveria condições para que sobrevivesse, criando como criava, em seu país natal?

Provavelmente não. Depois do fenômeno-hecatombe chamado The Beatles, marco da ascendência do marketing sobre a criação musical (houve isto com a criação artística como um todo, mas estamos tratando aqui exclusivamente da musical), acelerou-se a decadência da cultura ocidental numa velocidade tão extraordinária quanto foi veloz a modificação dos meios de comunicação de massas. São coisas interligadas, e é preciso examinarmos as muito especiais condições brasileiras para que entendamos os motivos de nossa – digamos – resistência .

Como nenhum outro país americano, o Brasil incorporou à sua cultura urbana os elementos fornecidos pelos índios, primeiros donos da terra, pelos negros desterrados. Uma peculiar disposição lúbrica (uma peculiar desordem colonizadora) dos portugueses dispôs a criação de uma raça nova, por outro lado não reconhecida como tal. A imensidão territorial, os contrastes geográficos, as invasões estrangeiras localizadas vieram somar diferenças ao que já era diferente. No corpo dessa nova gente, objeto de paixão de Darcy Ribeiro, de Sérgio Buarque de Holanda ou de Villa-Lobos e (claro) Tom Jobim, desenhou-se uma nova cultura ainda em conformação, ainda não cristalizada, ainda sem termo, e por isso mesmo criativa, viva, dinâmica, dialética.

Era dessa gente e dessa cultura, e de suas questões, conscientemente, que a juventude da segunda geração da bossa nova estava querendo tratar. Falava de um corpo social em evolução. Evoluía com ele – e pôde perenizar-se na busca. Edu Lobo estabeleceu a síntese-em-movimento. Carioca, filho de pernambucano, teve a diversidade ao alcance das mãos. Outros também a tiveram. Seu gênio permitiu-lhe aproveitá-la melhor do que qualquer outro de sua época e compor uma tradução musical de sua gente como a que haviam logrado Villa-Lobos e Jobim. Edu é a terceira ponta da trindade da música brasileira contemporânea

Como os dois antes dele, Edu Lobo aliou à inspiração – à capacidade inata de traduzir em beleza as observações cotidianas, de encontrar grandezas em motivações comuns – o capricho do artesão meticuloso, perfeccionista. É um compositor de obras definitivas, de acabamento irrecorrível. Por isso, sua música para balé, para cinema, televisão ou teatro é um corpo à parte da obra que complementa, um corpo de vida autônoma (que, no mais das vezes, sobrevive ao processo que a originou). Por isso, ainda, suas criações, cada uma delas, são um parâmetro.

Edu compõe admiravelmente bossa nova, sambas, marchas, frevos, canções praieiras (que deixaram de ser privilégio caymmiano), baladas, canções lentíssimas, marchas-rancho, experimentações instrumentais – talvez só não se tenha aventurado pelo terreno do samba-enredo, mas não se sabe como será o futuro. Escreve belíssimas letras, mesmo tendo como parceiros os melhores letristas do país. Pianista e violonista exímio, é arranjador de mão-cheia e cantor de primeiríssima linha. Seus instrumentos são sempre acústicos, o que não o afasta da mais moderna tecnologia quando vem em socorro do ofício.

E se é importante falar do faz-tudo, mais importante será salientar o preciosismo de sua escrita. Como só os grandes criadores, Edu Lobo inventou sua própria música. Ou seja: criou sua sintaxe, seu sotaque, sua marca de intervalos e síncopes, sua estrutura harmônica, seu caminho melódico, sua marca registrada. Mesmo que faça questão de identificar as raízes profundas do que faz. Para dar um exemplo: diz que a Valsa brasileira é jobiniana (diz o mesmo de outra obra-prima, o Choro bandido; ambas as obras têm letra de Chico Buarque) e é verdade. É também villa-lobiana. Por outro lado, Jobim não a comporia, muito menos Villa – os dois são pressupostos para a existência da Valsa brasileira, e o terceiro vértice da trindade fundadora da nossa música moderna não comparece apenas como emulador, mas como artífice basilar da fundação.

Em termos históricos, e não há nada de especulativo nisto, Edu Lobo vem caminhando com a modernidade que inaugurou até um limite sobre o qual – aqui sim – apenas se pode especular. Suas últimas obras, trabalhos de maturidade, mostram a concisão não-acomodada dos que reservam surpresas. Se, contra todas as expectativas de mercado, a música brasileira permanece rica e em evolução, Edu Lobo estará à frente dela. O quadro traçado por este Songbook, cujas partes Edu fez questão de anotar manualmente, com o capricho que dedica a qualquer tarefa a que se proponha, permite que o estudioso de música ou o curioso por música confirmem os adjetivos empregados no texto. Trata-se de uma das grandes obras musicais do século XX. Dizendo mais uma vez: é a melhor produção da melhor música que se faz no mundo.

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